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Adoro sepulcros caiados e lágrimas de
crocodilo
Eu adoro a estética da corrupção. Adoro a semiologia dos casos
cabeludos sob suspeita, adoro a reação dos implicados, adoro o vocabulário
das defesas, das dissimulações, as carinhas franzidas dos acusados na
TV, ostentando dignidade, adoro ver ladrões de olhos em brasa, dedos
espetados, uivos de falsas virtudes e, mais que tudo, lágrimas de
crocodilo.
Todos alegam que são sérios, donos de empresas "impecáveis".
Vai-se olhar as empresas, e nunca nada rola normal, como numa padaria. As
empresas sempre são "em sanfona", uma dentro da outra, en abîme
, sempre têm holdings, subsidiárias, são firmas sem dono, sem dinheiro,
sem obras, todas vagando num labirinto jurídico e contábil que leva a um
precioso caos proposital, pois o emaranhado de ladrões dificulta apurações.
Me emociona a amizade dentro das famílias corruptas, principalmente no
Nordeste. Ohh, Deus! Lá, creio eu, há mais amor do que entre picaretas
paulistas ou cariocas. Lá existe uma simbiose maior no parentesco, mais
calor humano, mais "fio de bigode". São inúmeros os primos,
tios, ex-sócios, ex-mulheres que assumem os contratos de gaveta, os
recibos falsos, todos labutando unidos, como Ali Babás sincronizados.
Baixa-me imensa nostalgia de uma família que não tenho e fico imaginando
os cálidos abraços, os sussurros de segredo nos cantos das casas
avarandadas, o piscar de olhos matreiros, as cotoveladas cúmplices quando
uma verba é liberada pela Sudam em 24 horas, os charutos comemorativos;
tenho inveja dos vastos jantares nordestinos, repletos de moquecas e
gargalhadas, piadas, dichotes, sacanagens tão jucundas, tão "coisas
nossas", tão "alagoas", que me despertam ternura pela preciosidade antropológica de imagens como a piscina verde em Canapi, a
barriga de Joãozinho Malta (lembra m?), a careca do PC Farias e as
sobrancelhas de Jader. Esses signos e símbolos muito nos ensinaram sobre
o Brasil real.
Adoro também ver as caras dos canalhas. Muitos são bochechudos, muitos têm
cachaços grossos, contrastando com o style dos populares magros de seca,
de fome, proletários chiques, elegantérrimos pela dieta da miséria.
Todos acumulam as mesmas riquezas: piscinas, fazendas, lanchões, miamis,
todos têm amantes, todos têm mulheres desprezadas e tristes, com filhos
oligofrênicos, deformados pelas doenças atávicas dos pais e dos avós.
Aprecio muito os bigodões e bigodinhos. Nas oligarquias, eles não usam a
bigodeira severa de um Olívio Dutra, babando severidade, com um eco de
stalinismo e machismo gaúcho, não. Os bigodes corruptos são matreiros,
bigodes que ocultam origens humildes criadas à farinha d'água e
batata-de-umbu, na clara ocultação de um acismo contra si mesmos,
camuflando os ancestrais brancos cruzados com índios e negros, raquíticos
por séculos de patrimonialismo.
Também gosto muito do vocabulário dos velhacos e tartufos. É delicioso
ver a ciranda das caras indignadas na TV, as juras de honestidade, é delicioso
ouvir as interjeições e adjetivos raros : "ilibado",
"estarrecido",
"despautério", "infâmias", "aleivosias"...
São palavras que ficam dormindo em estado de dicionário e só despertam
na hora de negar as roubalheiras. São termos solenes, ao contrário das
gravações em telefone, onde só rolam palavrões: "Manda a grana
logo para o f.d.p. do banco, que é um grande *#@, senão eu vou #@** a mãe
deste *#&@."
Outra coisa maravilhosa nos canalhas é a falta de memória. Ninguém se
lembra de nada nunca: "Como? D. Sirleide, aquela mulher ali, loura,
popozuda, de minissaia? Não me lembro se foi minha secretária ou não".
E o aparente descaso com o dinheiro? Na vida real, eles cheiram a grana
como perdigueiros e, no entanto, se justificam: "Ihhh... como será
que apareceu um milhão de reais na minha gaveta? Nem reparei. Ahhh...
essa minha memória!..."
Adoro também ver as fotos das placas da Sudam. Sempre aparece um terreno
baldio com a placa da Sudam e o nome pomposo da empresa fantasma, onde, às
vezes, ao longe, um burro pensativo pasta...
E o objetivo "social" dos financiamentos da Sudam, da Sudene?
Nunca é uma empresa para desenvolver algo; são ranários de 10 milhões,
fabricas de componentes para piscinas, empresas de ursinhos de pelúcia,
ou esta maravilhosa Usimar, que ia custar um bilhão de reais para fazer
peças de carro, mais caro que três General Motors na caatinga.
Amo também ver o balé jurídico da impunidade. Assim que se pega o
gatuno, ali, na boca da cumbuca, ali, na hora da mão grande, surgem logo
os advogados, com ternos brilhantes, sisudos semblantes, liminares na
cinta, cínica serenidade de cafajestes e, por trás deles, vemos as
faculdades malfeitas, as chicaninhas decoradas, os diplomas comprados.
E logo acorrem os juízes das comarcas amigas, que dão liminares e
mandados de segurança de madrugada, de pijama, no sólido apadrinhamento
oligárquico, na cordialidade forense e freguesa, feita de protelações,
desaforamentos,instâncias infinitas, até o momento em que surge um juiz
decente e jovem, que condena alguém e é logo chamado
exibicionista"...
Adoro as imposturas, as perfídias, as tretas, as burlarias, os sepulcros
caiados, os cantos de sereia, as carícias de gato, os beijos de Judas, os
abraços de tamanduá.
Adoro tudo, adoro a paisagem vagabunda de nossa vida brasileira, adoro
esses exemplos de sordidez descarada, que tanto nos ensinam sobre o nosso
Brasil.
Sou-lhes grato pelas sujas lições de antropologia, verdadeiros "gilbertos
freyres" da endêmica sem-vergonhice nacional.
Só um sentimento me atormenta o coração: não sei porquê, também me
passa pela cabeça a imagem dos corruptos chineses condenados e ajoelhados
no chão, com o soldado alojando-lhes uma bala de fuzil na nuca.
Penso nestas cenas e sinto uma grande inveja da China. Por que será?
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