Auto de Natal da Lapa
Rafael Cardoso
Do alto de suas sandálias plataforma dez, remelexia 1m75 de
feminilidade artificial, embalado por uma versão techno-samba de Noite
feliz. Monique executava apressadamente os últimos passos da
coreografia, tanto que por pouco não pisoteou o vestido em lamê
prateado de Dóris Dei, estrela maior do espetáculo de fim de ano
do Teatro Brigitte Blair. O pensamento de Monique já não estava
ali, no mundo notívago da Lapa, mas em Seropédica, onde voltaria a
protagonizar, durante os próximos dias, a vida como o filho pródigo
Monclarson, junto com sua mãe, quatro irmãs e inúmeros sobrinhos.
O irmão mais velho já havia avisado que não iria, o que não
chegava a ser novidade.
Momentos depois, olhos fechados para limpar a sombra dourada,
Monique foi surpreendida por uma estranha comoção no camarim,
acompanhada de um sussurro estridente de Natacha:
- Mona, aquele não é o Antônio Marcel?
- Mona é a mãe gentil! Monique, tá! Quem, o Antônio Marcel da
novela?!?
Voltando os olhos úmidos para a porta, ela vislumbrou quatro ou
cinco figuras exóticas, tudo Zona Sul, rodeando o galã global da
hora. Uma onda de excitação ia tomando conta do camarim, quando
uma mulher muito branca de vestidinho preto destacou-se do grupo e
anunciou imperiosa:
- Meu nome é Adriana Venâncio. Sou videomaker. E este é o
Peruca, artista plástico.
Assim dizendo, indicou com o braço esticado um sujeitinho
esquisito, de cabeça raspada, pesados óculos de armação preta e
camisa pólo surrada.
- Estamos realizando uma videoinstalação intitulada Feitiço
da Lapa e viemos aqui selecionar figurantes. Vocês sabem o que
é isto?
O tal do Peruca adendou, com ar blasé:
- É uma espécie de videoclipe, sem música.
Agradecida e irritada a um só tempo, Adriana retomou a palavra:
- É, é tipo um clipe. E o nosso gatíssimo Antônio Marcel, que
está aqui, é quem vai estrelar. Precisamos de três travestis para
contracenarem com ele.
A esta notícia, todas se ouriçaram. Foi Dóris, experiente,
quem perguntou:
- Tem cachê?
- Não.
Monique ainda arriscou:
- Mas, vai passar na tevê?
- Talvez. Quem sabe?
Algumas das meninas mais novas toparam, dentre elas Monique.
- Ah, não tem dinheiro, mas vale a pena, só para ficar perto do
Antônio Marcel! Ele é lindo!
Partiram em dois táxis diretamente para um motel na Joaquim
Silva, onde havia sido alugado um quarto para as filmagens.
* * *
Encontraram a equipe tomando cerveja num botequim defronte ao
hotel. Segundo Batista, o cinegrafista, os equipamentos já estavam
todos montados.
- Também não tinha muito o que fazer, com essas luzes fuleiras
que vocês me arrumaram!
Adriana fez que não ouviu e, puxando Peruca pelo braço,
adentrou o saguão acanhado do hotel. Passaram direto pelo velho
porteiro, o qual vigiava sonolento o movimento fraco daquela noite
de domingo, e subiram para o primeiro andar.
Batista rodou a chave na fechadura antiga, que já não oferecia
mais a menor resistência aos dentes gastos do metal. Do interior do
quarto, veio o som de vozes sussurrando, seguido de um estrondo
imediatamente reconhecível para o câmera como a queda de seu tripé
alemão. Batista abriu com ímpeto a velha porta e despencou-se para
dentro do quarto escuro. Ao fazê-lo, tropeçou num vulto ligeiro e
forte que perfazia o mesmo caminho em mão inversa. O garoto
irrompeu no corredor e, com todo o impulso de seus dezesseis anos
duramente sobrevividos, lançou-se escada abaixo, atropelando
artistas, técnicos e travestis sem distinção de classe, gênero
ou opção sexual. Antes que os intrusos se refizessem do choque,
seguiu pelo mesmo caminho outro menino menor, este embalando a câmera
enrolada numa camiseta. Batista agarrou-se à ponta solta do pano,
obrigando o menino a soltar o valioso equipamento em cima da barriga
mole do Peruca, caído. Ninguém mais tentou barrar sua fuga.
Terminada a ruidosa confusão, a comitiva foi ingressando aos
poucos no quarto para conferir os estragos. Ao acenderem a luz,
surpreendeu-lhes a visão de uma menina de cerca de treze anos, suja
e maltrapilha, agachada no chão, muito grávida. A expressão que
cobria-lhe o rosto refletia um misto de pavor e dor, prontamente
explicado pela poça que se alargava em torno de seus pés descalços.
Perplexa, Adriana indagou a Batista:
- Essa pivetinha está mijando no meu chão?
- Não, Adriana, ela está dando à luz. É a bolsa d'água que
estourou.
Batista ensaiou aproximar-se da menina mas se deteve ao vê-la
agarrar uma chave de fenda próxima e empunhá-la como uma faca, num
gesto de desafio. Seu corpo permanecia tenso, apesar do sofrimento
evidente. Subitamente, ao olhar para a porta, o semblante dela
mudou. Arregalando os olhos cheios de lágrimas, ensaiou um esboço
patético de sorriso, enquanto ia baixando a chave de fenda. Todos
seguiram seu olhar embasbacado em direção à porta e testemunharam
o momento em que Antônio Marcel adentrou o quarto, cercado pelos três
travestis plenamente embonecados.
Enfurecida, Adriana voltou-se para o cameraman e rosnou:
- Puta que pariu, Batista. Tira essa porra dessa menina daqui!
A troca momentânea de ódio entre os dois foi interrompida pela
voz de Peruca, estranhamente excitada:
- Não, Adriana, não! A gente tem que filmar isto! Uma menina
parindo, um galã da Globo do lado e três travestis da Lapa. Vai
ser a nossa Natividade fashion!!!
A cólera foi-se esvaindo dos olhos de Adriana, substituída por
um brilho perverso.
- Filma, Batista, filma! Se é que você quer receber a sua
parte, bota essa merda dessa câmera para rodar agora!
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