Porque é.
Claudia Lage
Andou com pressa sem hora marcada para nada. Virou as esquinas
pensando em como era bom virar alguma coisa. Tropeçou num treco
qualquer no meio do caminho e só depois viu não se tratar de uma
pedra. Os jornais que embrulhavam a pessoa deitada anunciavam uma
liquidação imperdível. Ótimo. Tinha mesmo que comprar presentes.
Corra, corra, não perca! Imediatamente, correu, embora não
soubesse o endereço. Passou por uma mulher linda, um homem lindo,
uma criança linda. Pensou: o mundo é bom. E a cidade cintilava com
as luzes extras sem nenhuma beleza nem economia.
No meio da multidão, esbarrou em alguém que conhecia.
Rapidamente, não se cumprimentaram. Na esquina, desejou felicidades
à mocinha que lhe vendeu um sanduíche. Depois, sentiu, de repente,
uma alegria. Mal podia esperar a noite. Gostava da comilança, da
família reunida. Nessa hora, cresceu um buraco em seu peito que o
fez logo pensar em doenças. Em seguida, imaginou curas. É o susto
do tempo. De tudo parecer a mesma coisa. E é também a dor desse
susto. São as horas corridas que se adiantam tanto, e para quê?
Para todos os anos caírem sempre no mesmo dia. Era o que pensava. Só
esperava que, se alguma vez morresse, fosse quando estivesse muito,
mas muito doente, pois achava morrer saudável um verdadeiro desperdício.
Calculava, no futuro, que seria capaz de saborear cada instante. Em
pequenas ambições, vislumbrava roçar a carne vida.
Olhando assim, é uma pessoa como outra qualquer. Carregando um
desejo como qualquer outro. Arrastando e alimentando o desejo.
Deixando ele crescer. Invadir o peito, arrepiar os pêlos, subir à
cabeça, desfiar os cabelos. É um perigo querer tanto assim. Talvez
seja a época do ano. Você sabe. Aquela que nos faz gastar o dobro
do dinheiro que temos. Aquela que nos faz pensar neles. No homem que
morreu na cruz e no que anda pelo mundo inteiro, por incrível que
pareça, de trenó. Um teve, no peso de sua dor, a dor de todos. O
outro, velhinho, vive até hoje num lugar muito longe e frio.
Coitados. E ainda têm que agüentar os teus pedidos. Esses desejos
que vocês carregam, arrastam, alimentam. Vejam só:
Carregar - Ato de levar ou conduzir uma carga. Tornar
sombrio, triste. Tornar mais intenso, mais forte. Exercer pressão
sobre.
Arrastar - Ato de levar à força. Mover com dificuldade.
Rastejar. Falar morosamente. Atrair, trazer atrás de si.
Alimentar - Dar alimento a. Nutrir, sustentar, conservar.
Incitar, incrementar. Manter, prover.
Então o homem carregou os presentes até em casa, a mulher
deixou mais forte o tempero da comida, o avô moveu com dificuldade
a própria perna, a avó alimentou as crianças, e a menina comeu
tudo, nutrindo a expectativa de enfim, naquele dia, ganhar um
presente impossível porque era Natal.
Então o avô conseguiu sustentar com o próprio corpo o peso dos
anos, a mulher falou morosamente com o marido, o homem exerceu pressão
sobre a esposa, trazendo-a atrás de si até o quarto, a avó
rastejou a história mais comprida para as crianças, e o menino deu
alimento a cada palavra, achando que naquele dia tudo em casa estava
mais calmo e bonito porque era Natal.
Então a menina sustentou que Papai Noel não existia, o menino
incrementou achando que aquela barba de algodão era mesmo patética
e ridícula, o avô tornou-se sombrio porque perguntava e ninguém
respondia, a avó incitou a filha a cuidar dos filhos e da cozinha,
a mulher entristeceu, pois ela e o marido às vezes não se
entendiam, o homem carregou o medo de perder tudo aquilo que nem
tinha tanta certeza assim de que tinha, e todos prometeram evitar
discussões naquele dia porque era Natal.
A pele brilhava. Perfeita. Se a levantasse apenas um pouquinho,
encontraria a carne branca e macia. Igualmente perfeita. Nesse
momento, a boca certamente já estaria transbordando de água. Água
de fome e vontade. Uma faca grande e bem afiada faria o corte
preciso. Com muita calma, penetraria nela o garfo de enormes dentes
e a deitaria languidamente no prato. Ao seu lado, para breve
companhia, um pouco de arroz, farofa e maionese. Pronto, perfeito.
Agora, a boca aberta já estaria à espera, assim como todas as glândulas
e todos os dentes. Se houver sorte e dinheiro, 32 inteiros ou
consertados. Mas, antes, outro corte. Menor, mais delicado, mais
sensível. Enfim, o garfo, o pequeno, espetaria a sua pressa na
carne. E a boca ávida, como em nenhum outro dia, engoliria tudo. Ao
seu lado, em silêncio, a sua mulher fazia o mesmo. Ao lado dela,
fazia o mesmo a sua filha. E o filho. Na outra ponta, o seu pai, mãe,
e pai e mãe dela. Na casa vizinha, dava para ouvir o mesmo. E o
mesmo, o mesmo. Alguém riu, todos riram. Alguém disse Feliz Natal,
todos repetiram. Alguém estendeu um presente, todos estenderam.
Alguém anunciou que ia dormir, dormiram. E o céu deste mundo
brilhava, sem reluzir nenhuma estrela.
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