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Carta escrita por Herbert de Souza (o Betinho) para sua mulher
Maria e
lida, um ano após sua morte, pelo ator Jonas Bloch, durante a
cerimônia no CCBB:
"Este texto é para Maria ler depois da minha morte que,
segundo meus cálculos, não deve demorar muito. É uma declaração de amor.
Não tenho pressa em morrer, assim como não tenho pressa em
terminar
esta carta. Vou voltar a ela quantas vezes puder e trabalhar com
carinho e cuidado cada palavra. Uma carta para Maria tem que ter
todos os cuidados. Não quero triste, quero fazer dela também um pedaço
de
vida pela via de lembrança que é a nossa eternidade. Nos
conhecemos nas reuniões de AP (Ação Popular), em 1970, em pleno
Maoísmo.
Havia
uma clima de sectarismo e medo nada propício para o amor.
Antes de me aventurar andei fazendo umas sondagens e os sinais
eram
animadores, apesar de misteriosos. Mas tínhamos que começar o
namoro de alguma forma. Foi no ônibus da Vila das Belezas, em São
Paulo.
Saímos em direção ao fim da linha como quem busca um começo. E
aí veio o primeiro beijo, sem jeito, espremido, mas gostoso, um
beijo público.
A barreira da distância estava rompida para dar começo a uma
relação
que já completou 26 anos!
O Maoísmo estava na China, nosso amor na São João. Era muito
mais forte que qualquer ideologia. Era a vida em nós, tão sacrificada
na
clandestinidade sem sentido e sem futuro. Fomos viver em um quarto
e
cozinha, minúsculos, nos fundos de uma casa pobre, perto da
Igreja da
Penha. No lugar cabia nossa cama, uma mesinha, coisas de cozinha e
nada mais. Mas como fizemos amor naquele tempo!
Foi incrível e seguramente nunca tivemos tanto prazer.
Tempos de chumbo, de medo, de susto e insegurança. Medo de dia,
amor
de noite. Assim vivemos por quase um ano. Até que tudo começou
"cair". Prisões, torturas, polícia por toda a parte, o
inferno na
nossa frente. Fomos para o Chile. E ali, chamado por Garcez para
elaborar textos, acabei no agrado de Allende, que os usou em seus
discursos oficiais. Foi a primeira vez que eu vi amor virar
discurso
politico... Depois passamos por muita coisa até voltar. Até que a anistia chegou e nos
surpreendeu. E agora, o que fazer com o Brasil?
Foi um turbilhão de emoções: o sonho virou realidade! Era
verdade, o
Brasil era nosso de novo. A primeira coisa foi comer tudo que não
havíamos comido no exílio: angu! com galinha ao molho pardo,
quiabo
com carne moída, chuchu com maxixe, abóbora, cozido, feijoada.
Um
festival de saudades culinárias, um reencontro com o Brasil pela
boca.
Uma das maiores emoções da minha vida foi ver o Henrique
surgindo de dentro de você. Emoção sem fim e sem limite que me fez
reencontrar a
infância.
Depois do exílio, nossas vidas pareciam bem normais. Trabalhávamos;
viajávamos nas férias, visitávamos os amigos, o Ibase
funcionava, até
a hemofilia parecia que havia dado uma trégua. Henrique crescia,
Daniel aos poucos se reaproximava de mim, já como filho e amigo.
Mas como uma tragédia que vem às cegas e entra pelas nossas
vidas, estávamos diante do que nunca esperei. A Aids. Em 1985, surge a
notícia da epidemia que atingia homossexuais, drogados e hemofílicos.
O pânico
foi geral. Eu, é claro, havia entrado nessa. Não bastava ter
nascido mineiro, católico, hemofílico, maoísta e meio deficiente físico.
Era necessário entrar na onda mundial, na praga do século,
mortal,
definitiva, sem cura, sem futuro e fatal. E foi aí que você, mais
do
que nunca, revelou que é capaz de superar a tragédia, sofrendo,
mas enfrentando tudo e com um grande carinho e cuidado. A Aids selou
um
amor mais forte e mais definitivo porque desafia tudo, o medo,
tentação do desespero, o desânimo diante do futuro. Continuar
tudo
apesar de tudo, o beijo, o carinho e a sensualidade.
Assumi publicamente minha condição de soropositivo e você me
acompanhou. Nunca pôs um "senão" ou um comentário
sobre cuidados
necessários. Deu a mão e seguiu junto como se fosse metade de
mim,
inseparável. E foi. Desde os tempos do cólera, da não esperança,
da morte do Henfil e Chico, passando pelas crises que beiravam a
morte até o coquetel que reabria as esperanças. Tempo curto para
descrever, mas uma eternidade para se viver.
Um dos maiores problemas da Aids é o sexo. Ter relações com
todos os cuidados ou não ter? Todos os cuidados são suficientes ou não
se deve correr riscos com a pessoa amada? Passamos por todas as fases,
desde o sexo com uma ou duas camisinhas até sexo nenhum, só
carinho. Preferi a segurança total ao mínimo risco.
Parei, paramos e sem dramas, com carências, mas sem dramas, como
se fosse normal viver contrariando tudo que aprendemos como homem e
mulher, vivendo a sensualidade da música, da boa comida, da literatura,
da invenção, dos pequenos prazeres e da paz. Viver é muito mais que
fazer sexo. Mas para se viver isso, é necessário que Maria também
sinta assim e seja capaz dessa metamorfose como foi.
Para se falar de uma pessoa com total liberdade é necessário que
uma
esteja morta e eu sei que este será o meu caso. Irei ao meu
enterro
sem grandes penas e principalmente sem trabalho, carregado.
Não tenho curiosidade para saber quando, mas sei que não demora
muito.
Quero morrer em paz, na cama, sem dor, com Maria do meu lado e sem
muitos amigos, porque a morte não é ocasião para se chorar, mas
para
celebrar um fim, uma história. Tenho muita pena das pessoas que
morrem sozinhas ou mal acompanhadas, é morrer muitas vezes em uma
só. Morrer sem o outro é partir sozinho. O olhar do outro é que te
faz viver descansar em paz. O ideal é que pudesse morrer na minha cama
e sem dor, tomando um saquê gelado, um bom vinho português ou
uma cerveja gelada.
Te amo para sempre,
Betinho,
Itatiaia, janeiro de 1997"

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